Houve uma época, na escola pública brasileira, em que o Colégio Central da Bahia, em Salvador, teve, ao mesmo tempo, alunos que se chamavam Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, Fernando da Rocha Peres, João Ubaldo Ribeiro, Florisvaldo Mattos, Calasans Neto e João Carlos Teixeira Gomes. Colaboradores da revista Mapa, que deu nome à geração de baianos sem os quais o cinema, a literatura e as artes plásticas não alcançariam a culminância a que chegaram no Brasil.
Jovens estudantes, alguns se tornaram amigos fraternos por toda a vida, como Ubaldo e João Carlos Teixeira Gomes, nosso querido Joca, a quem devo o encontro com o romancista de Sargento Getúlio, que fora em 1982 a Fortaleza para receber um prêmio do Banco do Nordeste. No ano seguinte, o cearense Hermano Penna filmaria a história de abuso do poder e de injustiça social, com Lima Duarte em um desempenho que lhe valeria, trabalhasse em Hollywood, o Oscar de melhor ator.
Fosse pouco escrever a “epopeia trágica” cujo protagonista se põe, no conceito do crítico José Hildebrando Dacanal, entre as mais comoventes personagens da literatura brasileira, o autor lançaria, em 1984, o monumento que é Viva o povo brasileiro, romance capaz de fazer, sozinho, a grandeza de qualquer literatura. Joca fez chegar a Ubaldo meu artiguete sobre o livro, e mandou-me carta da ilha já orgulhosa do ficcionista que a exaltava:
“Como você vê, escrevo-lhe de Itaparica e precisamente da casa do nosso João Ubaldo, que ficou muito feliz com o seu excelente “Viva Ubaldo brasileiro”, um achado logo no título. (Vá perdoando os erros, escrevo estas maltraçadas sem óculos, mas não quis perder a glória de lhe enviar uma carta saída da própria máquina de onde nasceu Viva o povo brasileiro)... Ubaldo está aqui junto e manda abraços.”
Comunica que já tem prontas as 500 laudas datilografadas do seu Gregório de Matos, o Boca de Brasa, mas ainda não foi a Salvador para levá-lo ao prelo: “Prefiro a paz destas praias e a intimidade destas solidões, longe dos chatos da Bahia, os chatos mais chatos do mundo”. E reclama divertidamente do colega: “Ubaldo diz-me besteiras a todos os instantes, não me permite a concentração tão necessária às ideias profundas e originais, de tal maneira que serei compelido a interromper tão importantes digressões...” Manda-me um abraço, assina “Joca” e como que passa a palavra ao amigo, que acrescenta: “Edmílson, não o conheço, mas já sei do” – e a frase se interrompe com a seguinte declaração, datilografada em vermelho:
“Nota do caluniado. Esta linha aí em cima ia sendo escrita pelo refinado lorpa e solerte safardana, esquecendo- -se ele de que já nos conhecemos, embora brevemente. Ele ia escrever uma frase sentimentaloide para eu assinar e mentir para você, dizendo que eu a tinha escrito. Mais uma das aleivosias e dúbias manobras desse rapaz, que sem dúvida as aprendeu na convivência sempiterna com seu ídolo na Terra, o Dr. Antônio Carlos Magalhães. Cabe-nos desmascarar tais raposices, denunciando-as destemidamente à consciência da Nação. Em tempo: em sua carta, ele fez questão de omitir qualquer referência a meus caládios, que estão rebentando prematuramente este ano, constituindo-se em motivo de orgulho para mim e de desenfreada inveja da parte dele. Receba minhas saudações insulanas, um abraço honesto do João Ubaldo.”
Romancista admirável, contista dos melhores, excelente cronista, amigo fraterno, ser humano generoso, o escritor partiu rumo ao céu, aos 73 anos, com o fardão da Academia Brasileira de Letras. Acho que preferiria estar sem camisa, de bermudas e sandálias, para continuar a viver como sempre gostou, agora nos itaparicanos latifúndios da eternidade.
(*) Edmilson Caminha (Fortaleza), escritor, membro da Academia Brasiliense de Letras.