Recife, 1977. Ao pernambucano do táxi, nem perguntose sabe onde mora Dom Hélder Câmara: todoso conhecem, e não lhe cobram a corrida quando têm ahonra de atendê-lo.
— A casa dele é nos fundos da Igreja das Fronteiras,na Bela Vista. Quando não está viajando atende todomundo, não precisa nem marcar hora...
A chamada “grande imprensa” não dá notícias sobreele, e alguns órgãos, mais realistas do que o rei, sequerlhe citam o nome. Quatro vezes indicado, no começoda década de 1970, para o Prêmio Nobel da Paz, contraele trabalharam furtivamente nossos governantes:documentos secretos da Embaixada do Brasil em Oslodão a conhecer instruções do presidente Médici ao entãoembaixador, Jaime de Souza Gomes, para que se empenhasseno sentido de que não se concedesse o prêmio aoreligioso brasileiro. Some-se, a essa oposição oficial, odesapreço de figuras como Nelson Rodrigues, para quemDom Hélder só se lembra de que existe céu quando quersaber se vai chover...
No salão despojado em que sou recebido, a singelacruz de madeira por sobre a batina bege representa asimplicidade, a mansidão de espírito com que, corajosamente,aquele homem pequenino afronta governos ediverge da ala mais conservadora da própria Igreja. A impressãoque me dá é de um verdadeiro cristãoindiferenteao poder, acima das pompas do mundo, imperturbávelante os apelos da vida.
A conversa, prazerosa e demorada, começou com otalento da família Câmara para jogar com reis, rainhas etorres: Hélder e Ronald, sobrinhos dele, foram campeõesbrasileiros de xadrez. Voltamos sentimentalmente aonosso Ceará, ao velho Seminário da Prainha, no centrohistórico de Fortaleza, onde o futuro líder da Igreja seordenou padre da Ordem Franciscana Secular aos 22 anos,em 1931, tão jovem que careceu de autorização especialda Santa Sé, por não ter a idade mínima para o sacerdócio.Lembro-lhe que lá também estudou o Padre AzariasSobreira, meu parente, o que o leva a me perguntar:
— Sabe quem era colega dele? Um pernambucanochamado Austregésilo de Athayde, hoje presidente daAcademia Brasileira de Letras, que não continuou porfalta de vocação. Não foi o caso do Monsenhor Azarias,que veio ao mundo para servir a Deus, para amar o próximo.E escrevia bem! Li, dele, a excelente biografia doPadre Cícero, “O Patriarca do Juazeiro”, muito honesta,isenta, apesar da grande amizade que os unia. Além deafilhado, era confessor do Padre Cícero.
No livro “O deserto é fértil”, que lhe passo às mãos,dá-me o autógrafo: “Edmílson, meu jovem amigo. Umadas minhas razões de esperança está em Vocês, os jovens.Ajudem a construir um mundo mais respirável, maisjusto e mais humano!”
O Arcebispo de Olinda e Recife ainda viveria muito:morreu em 1999, aos 90 anos, como cidadão honoráriode 28 cidades brasileiras, e “Doutor Honoris Causa” deuniversidades da Bélgica, Suíça, Alemanha, Itália, Holanda,Canadá e Estados Unidos. Deixou-me a imagemde um homem bom, alegre na humildade e profundamentefeliz no amor ao próximo, que certa vez afirmoucom sabedoria: “Deus parece injusto, mas não é. Pedemais de quem recebe mais. Quem recebe mais, recebeem função dos outros. Não é maior nem melhor, é maisresponsável. Deve servir mais. Viver para servir.” DomHélder tinha razão: o deserto humano pode ser fertilizado,pela esperança que sustenta a luta e pela justiçaque semeia a paz.
(*)Edmilson Caminha (Fortaleza), Escritor, Consultor legislativo, membro da Academia Brasiliense de Letras