A par da grandeza literária, pelo primor dos seus romances e
contos, o cearense Caio Porfírio Carneiro foi dos homens mais
generosos, mais solidários e mais prestativos que encontrei
em toda a minha vida. À tentação da vaidade e ao gozo da
fama, respondia com o despojamento e a discrição que só se
acham nos espíritos verdadeiramente superiores. Havia algo
de franciscano na humildade e na modéstia com que viveu e
morreu, aos 89 anos que acabara de fazer.
Por mais de meio século, protagonizou uma luminosa
carreira literária, desde o lançamento, em 1961, de “Trapiá”,
volume que logo o inscreveu na mais representativa linhagem
brasileira do conto, a que pertencem Graciliano Ramos, Her-
milo Borba Filho, Juarez Barroso, Moreira Campos e Dalton
Trevisan, cinco mestres do gênero. Como romancista publicou,
em 1965, “O sal da terra”, admirável pela força humana e pela
riqueza do estilo, daquelas obras que marcam para sempre a
sensibilidade de quem as lê.
Conterrâneos e amigos, lembrávamos com orgulho o paren-
tesco que nos estreitava, como netos de avôs que eram primos
de Adolfo Caminha, o grande romancista do “Bom-Crioulo”.
Da correspondência que trocamos, reproduzo o que me es-
creveu Caio em 15 de setembro de 1992, da São Paulo onde
vivia, trabalhava e escrevia suas histórias. É página cheia de
grandeza humana, de doçura espiritual e de amor ao próximo,
testemunhados pelos que tivemos a honra da sua amizade e o
privilégio do seu convívio:
“Meu querido primo Edmílson, há dias vinha pensando
em responder à sua carta. Mas cadê coragem? É que a Dedé,
minha segunda mãe, está muito doente no hospital. Uma se-
gunda isquemia levou-a a um estado praticamente vegetativo,
vivendo à custa de sondas. Não sabemos até quando isto irá...
“Fico pensando como esta merda de vida é estranha. Ma-
mãe, quando casou, em 1918, levou a Dedé, filha de índio com
cearense, para morar com ela e ajudá-la nas labutas da casa. Era
mocinha. Os filhos foram nascendo, num total de dez, e ela ao
lado da minha mãe, ajudando a nos criar. Todos nós mijamos e
cagamos nos seus braços. Não se casou. Passou a vida dando
de si. Preocupou-se com todos nós a vida inteira. Todos já
adultos, envelhecendo, e ela fazendo chazinho quando sabia
que um de nós estava doente, como se todos continuassem
crianças com catapora. Éramos o seu mundo e o seu horizonte.
Nada pedia para si. Depois que mamãe se foi, em 1961, ela
continuou na mesma faina, à frente de tudo. Se pensávamos
em chamar alguém para ajudá-la na cozinha, vinha a bronca.
Envelheceu junto ao fogão, como ao leme de um barco. Com o
primeiro problema isquêmico, foi obrigada a ir para uma casa
de repouso. De lá, só pensava em nós, se alguém estava doente,
etc. Escondíamos o que podíamos dela. (...) Estava sempre ao
lado daquele que precisasse de mais auxílio.
“E agora, aos 83 anos de idade, fina-se num leito de hos-
pital. Não ia a cinema, não se divertia, de televisão só assistia
ao Sílvio Santos. Levamos a querida ‘mãe’ inúmeras vezes
ao Ceará. Se estava lá, pensava nos que ficaram aqui; aqui,
pensava nos de lá. Um dia, pediu que abríssemos para ela uma
caderneta de poupança, para guardar os seus trocados. Eu fiz
isto. Ela foi juntando, juntando... De repente, insistiu para sacar
tudo. Muito bem. Sacamos. Ela pegou o dinheiro e comprou
presente para todo mundo, nada para si. Pergunto: que sentido
tem essa vida, primo? Não creio em céu, em inferno, em nada.
Mas preciso urgentemente criar um céu para colocar todas as
Dedés do mundo, que nunca leram uma poesia, nunca leram
um romance, nunca ouviram uma sinfonia, nunca admiraram
uma obra de arte. Começo a crer que uma vida como a da Dedé
tem mais arte em si do que a Arte que tanto admiramos... (...)”
Assim era Caio Porfírio Carneiro, um homem simples e
bom, contista fabuloso, brilhante romancista, de cuja boa prosa
sentiremos falta, muita falta.
(*) Edmilson Caminha (Fortaleza) jornalista e escritor, membro da Academia Brasiliense de Letras e diretor da Associação Nacional de Escritores.