Em conversa com um amigo baiano, disse-lhe que gostava do desenho de Ziraldo:
— Pois eu não – discordou.
— Mas o traço dele é inconfundível!
— O bigode de Hitler também é...
Tem razão: “inconfundível” não é valor. Admiro em Ziraldo, quis dizer, sua paixão de criar, a vida que infunde aos personagens, o brilho das cores, a inteligência e a graça do humor. Não discutirei com os que o condenam, e a Jaguar e Cony, pela indenização a que tiveram direito, como vítimas da ditadura que os levou à prisão e lhes fechou as portas da imprensa em que trabalhavam. São patrulheiros que se erguem contra o que antes lhes parecia uma “Revolução”, e, 50 anos depois, tão facilmente denominam “golpe de 64”, a que deram apoio – quando não se calaram por medo –, nos primeiros dias do governo Castello Branco, em que outros, corajosamente, desafiaram o arbítrio, a perseguição, a censura e a violência dos novos donos do poder. Ziraldo foi um deles.
Agora com 80 anos, mais de cem livros publicados e de 8,5 milhões de exemplares vendidos, mereceu, em 2007, o documentário Ziraldo, o eterno menino maluquinho, dirigido por Sônia Garcia. Nele, relembra a infância na mineira Caratinga, sob a autoridade do avô materno, o paparicamento das tias e a força da Igreja. E garra a contar histórias, como a de Zé Padeiro, o beato-mor caratinguense, que aos ouvidos do menino cantava, com a voz grave que enchia a Catedral de São João Batista: “Sempre, sempre, em Deus seguro, trem de ferro, cheio de cristão...” Só muito depois é que Ziraldo compreenderia o que verdadeiramente se rogava às ovelhas: tende fé, sede cristão!
Por entre lembranças de personagens e amigos, o criador da Turma do Pererê discorre, ao longo do documentário, sobre a matéria que mais o apaixona: educação, no mais profundo e nobre sentido da palavra. Não apenas o ensino escolar, mas o fascinante processo em que meninas e meninos se constroem a si mesmos, como estudantes mas, sobretudo, como leitores. Operação que tem de começar muito cedo, no máximo até os oito anos, idade em que, como escreveu Joaquim Nabuco no clássico Minha formação, já transcorreram os acontecimentos em que se alicerçará a vida. Nessa experiência, papel da maior importância cabe à leitura, “a malhação da cabeça”, como a conceituou a crítica de teatro Bárbara Heliodora. Não por dever, por obrigação curricular, por tarefa que valha nota, mas unicamente pelo prazer de ler, de sonhar, de descobrir, de viajar no tempo e no espaço, de compreender melhor o homem e o mundo.
Porque agradam a um público que vai da criança ao avô, os textos de Ziraldo são ainda mais belos e ricos: O menino maluquinho (mais de cem edições, dois milhões e meio de exemplares vendidos), O planeta lilás, Menino do rio doce, Flicts, O pequeno planeta perdido (história original do nosso Mino Castelo Branco), Uma professora muito maluquinha, Vovó Delícia, Menina Nina e tantas outras obras que o fazem referência como artista plástico e como grande escritor, cujo êxito poucos alcançam no mundo. De tal maneira que, se pudéssemos viajar pelo Brasil naquele trem de ferro cheio de cristão, é bem possível que todo passageiro estivesse com um livro do Ziraldo na mão...
(*)Edmilson Caminha (Fortaleza), Escritor, Consultor legislativo, membro da Academia Brasiliense de Letras