“Pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis.Sou uma mulher rústica, muito pegada à terra, muitoperto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisaselementares do chão e do céu.” Assim apresentava-seem 1945, aos leitores da revista O Cruzeiro, Rachel deQueiroz, que por 30 anos assinaria a “Última Página”, comum público tão fiel que muitos só começavam a folheara publicação de trás para frente, para começar por ela...
Romancista famosa, aos 19 anos escrevera O Quinze,em que conta a tragédia de uma das piores secas havidasno Ceará. O romance é de tal maneira vigoroso queGraciliano Ramos admitiria, mais tarde, que o nome daautora lhe parecera um pseudônimo – não de mulher,mas de homem, tal a dureza humana e a experiência devida com que a obra impressiona quem a lê. Para algunscearenses, o verdadeiro autor era o pai da mocinha, Danielde Queiroz, juiz de direito e homem de cultura. Otempo cuidou de desfazer os equívocos, com os romancese crônicas que a confirmaram como uma das maioresexpressões da literatura brasileira contemporânea.
Família de grandes proprietários de terra, os Queirozeram donos de várias fazendas nos sertões de Quixadá,a 180 quilômetros de Fortaleza. À escritora caberia, porherança paterna, o quinhão denominado Não Me Deixes,que assume com o marido Oyama. Foi lá que AnaMaria e eu estivemos com ela em 1986, na prazerosacompanhia dos compadres Maria Lima (Lula, como osamigos a chamamos) e Olavo Colares.
No alpendre da casa de pouco luxo, fomos recebidospor uma acolhedora e risonha fazendeira, tão singelamentevestida quanto as mulheres que a ajudavam nacozinha. Lá, gostava de passar com o marido a primeirametade do ano (“inverno”, para o sertanejo, quandochove na região), entre caminhadas pelos arredores econversas com os moradores.
Quando lhe pergunto sobre a adaptação que a TVGlobo fizera do romance As Três Marias, em 1980,declara que sinceramente não gostou:
— Eles transformaram o livro em uma novela policial,com um caso de antissemitismo que não há naminha história! Isso me constrangeu bastante, pois tenhomuitos amigos judeus e sempre me relacionei bem como Estado de Israel. Pensei em entrar na justiça contra aGlobo, mas teria de depositar em juízo o que eles mepagaram. E eu já havia gastado tudo, com o tratamentomédico do Oyama.
No dia 4 de novembro de 2003 – exatamente 26 anosdepois de empossada na Academia Brasileira de Letras,e a duas semanas do aniversário de 93 anos –, Rachel deQueiroz foi encontrada morta no apartamento em quevivia no bairro carioca do Leblon, após sofrer um infartodurante o sono. Embora vítima de derrame em 1999, ede uma isquemia no ano seguinte, até sete meses antesde morrer ditava para a irmã, Maria Luíza, as crônicaspublicadas semanalmente pelos jornais O Estado de S.Paulo e O Povo, de Fortaleza.
Essa, a conterrânea ilustre que nos recebeu tão cordialmentena Fazenda Não Me Deixes, a Velha Senhoraque se dizia “melhor cozinheira do que escritora”. Amulher simples, a sertaneja autêntica, para quem, maisdo que a glória acadêmica ou a consagração literária,fazer a sesta em um alpendre, balançar-se em uma redee repousar os olhos em um açude eram, como escreveuem uma bela crônica, a expressão maior da felicidadehumana.
(*)Edmilson Caminha (Fortaleza), Escritor, Consultor legislativo, membro da Academia Brasiliense de Letras