Dezembro 2009
Chico Romano da Ponte
Certas cenas ficam gravadas to intensamente em voc que, depois de certo tempo, no se sabe se realmente existiram ou se foram geradas em sua fantasia: Parece que ainda estou vendo cena de minha infncia que vou relatar Ou fui eu quem a criou, posteriormente, em minha imaginao?
Francamente, no sei.
Sou um menino velho, cabeudo, de dez a onze anos, que faz alguns mandados l de casa. Compro alguma cousa no armazm do Chico Romano da Ponte, nos baixos de um sobrado, da avenida Dom Jos, com a rua Coronel Ernesto
Deocleciano. Ele veste camisa clara desabotoada, por fora da cala, deixando ver o ventre proeminente e os plos embranquecidos. Recebe meu dinheiro e o guarda, com displicncia, na gaveta do balco enquanto continua a conversa com outro fregus. Aconteceu mesmo? Me pergunto eu.
No sei.
De Chico Romano se conta uma estria que fala bem de sua boa f. Certa vez, recebeu a visita d e um cidado de que no se lembrava e que lhe vinha pagar velha dvida de 500 mil ris, o que era bom dinheiro na poca. Chico no quis receber. No se recordava. da operao. No tinha idia de tal dvida. O visitante, porm, era tenaz em seu escrpulo e convincente em sua correo. Avivou a memria do credor com detalhes da compra feita, da mercadoria levada, da dvida contrada, do dilogo travado na hora, dos fregueses presentes. No houve jeito. Dobrou o dono da casa e deixou ali a grana:
- Que homem decente. Nem eu mesmo me lembrava dessa dvida Chico Romano passou, vrios dias, gabando, pr todo mundo, honestidade to rara.
Quando o fregus voltou, foi, naturalmente, acolhido com cafezinho, agrado, festas. No teve assim, qualquer dificuldade em lotar todo um caminho de mercadorias. No fiado, claro. O espertalho nunca mais deu sinal de vida.
A propsito, meu pai lembra que somente pde construir uma s casas em Sobral, graas ao crdito do armazm do Chico Romano. Mandava buscar mercadorias sem sequer necessitar de vale. S de boca.
A firma andava aos trancos e barrancos. Deu, porm, para o velho Chico, educar a famlia, com toda a dignidade.
Ao receber jovens matutas, bem apessoadas, ele tirava seu sarro. Sempre achava um jeito de apalpar-lhes as formas. Conta a lenda que, certa vez, chegaram ao armazm uma velha e duas netas formosas. No deu outra. Chico foi luta. Quando acabou de acariciar as meninas, viu que a velha ficou na fila na sequncia, esperando seu quinho. Repeliu-a com veemncia:
- Sai do meio, pau velho. Deixa de ser enxerida...
Quando lhe trouxeram a maca, ainda fez blague:
- Cad a mulher?
- Que mulher, pai?
- A me?, perguntaram os filhos.
Ele explicou risonho:
- Cad a mulher? Nunca fui para a cama que no fosse com uma mulher.
Pior (ou melhor?)era o irmo
Manuel Romano de Ponte era scio (ou era empregado do irmo, Chico Romo),primeiro numa mercearia na ento Rua Senador Paula. quele tempo, as balanas usavam peso de ferro para aferir a quantidade do produto.
Quando chegava a um quilo, Chico sempre inventava uma maneira para acrescentar mais cem, duzentas gramas, alegando que a balana podia estar com defeito. Se o comprador era uma criana,enchia lhe a mo de balas, na poca, chamados bombons.
Venda de casa cara
Mais tarde,j no armazm da Praa Jos Saboya, ainda scio do irmo, Manuel Romano vendeu casa de sua propriedade ao monsenhor Alosio Pinto.
Dia seguinte, aps a transao concretizada, o vendedor madrugou sua porta o que o levou a ficar inquieto, temeroso de que quisesse desfazer o negcio:
- O que ? Quer desistir? No d mais, no Manuel Romano explicou:
que no consegui dormir. Passei a noite em claro, achando que o explorei. Sem querer, o roubei. Cobrei mais pela casa do que valia. Vim devolver o dinheiro que recebi a maior.
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(*) Lustosa da Costa (Sobral), jornalista e escritor.