Fevereiro 2009
Acopiara vista à distancia, em cruzeiro
Viajei com acopiarenses em um cruzeiro pelas costas do Brasil. Éramos quase duas mil pessoas, 10% de cearenses. Nós estávamos em 1%, menos de uma dúzia. Uma pena que a Acopiara não tenha mar e não possa se candidatar a ser escala turística. Nada é impossível pois a Bolívia além de não ter mar exibe uma robusta Marinha de Guerra com um almirantado cheio de medalhas, mais parecendo bolo confeitado. Não sei como tais barcos chegaram lá em cima do morro. Suponho que as titicas foram construídas nos estaleiros às margens do Titicaca.
É uma pena porque cidades marítimas tem escalas e pouco, muito pouco, oferecem aos turistas, como Ilhéus, Ilha Grande, Búzios, Ilha Bela e Porto Belo. Carecem de estrutura mínima. Jorge Amado está abandonado e esquecido em Ilhéus, caminha para virar lenda. Em Búzios, até a estátua de Brigite Bardot foi roubada e derretida. Ilha Grande nem presídio tem mais. Ilha Bela só tem paulista e Porto Belo só catarina. Mesmo cidades grandes estão atordoadas, diante das ondas de assaltos e violência. Em Salvador, a 3ª. cidade do Brasil, assalta-se turista à luz do sol. Avança-se sobre um cordão de ouro como fosse um troféu. Há quem afirme que as empresas de cruzeiro, geralmente italianas, sediadas no paraíso fiscal do Panamá, recebem uma baba das autoridades para que possam escalar e espalhar a horda pelas ruas.
Nós que saímos de Acoplara para lutar pela vida mundo afora, podemos fazer cruzeiro, pacote comprado em suaves prestações. Mesmo porque outros brasileiros, nascidos no colosso do Centro, Sul e Sudeste o fazem com razoável freqüência. “Sai mais barato do que comprar passagem aérea e hospedagem em hotel, traslados,” tours” etc. Com a vantagem fundamental da segurança, do sono tranqüilo, das seis refeições diárias, shows, tenores, mágicos, bailarinas, ilusionistas, animação, cassino, piscinas, “free shop”, butiques, academia, etc.
Nós acopiarenses parecemos um pouco tímidos no meio do grupo bufunfeiro que parece dono do navio. Não chateiam ninguém, mas exibem as jóias da Coroa. Mas como ninguém lhes dá importância, recolhem-se. . De traje social, bermudão, calção, biquíni, etc, todos somos aparentemente iguais. O nivelamento – ao contrario do mundo real – é pelo ideal de conforto e satisfação.
Com nossos recursos escassos não nos damos a luxos e exibicionismos. Contentamo-nos com o pouco que Deus nos deu, o que já é muito. Somos parcimoniosos e mostramos uma certa austeridade. Para nós a abundancia nos constrange, pois aprendemos o quanto é difícil conviver com a escassez.
Há muita gente que faz de seis a dez refeições. Cada pratalhada vem cheia, sendo que metade é deixada de lado. Gente glutona, comilona, que come com os olhos. Gente com compulsão de comida. Gente que não está nem aí para o seu desperdício. O que não cabe no bucho vai para o lixo. Os indonésios livram apenas sachês de geléia e manteiga, potinhos de iogurte. Restos de carne, peixe, frango, peru, lula, verduras, frutas, pães, macarrão, pizzas, queijos, tortas, sorvetes, leite, suco, café, sucrilhos, serão processados e atirados em alto mar para servir de comida aos peixes.
Vocês podem não acreditar mas invariavelmente, estávamos falando de Acopiara, dos nossos antepassados e contemporâneos, daquela vidinha tão singela e tão distante, dos fatos e suas versões. Saímos de Acopiara mas continuamos presos pelo umbigo, pela memória, pelo traço cultural, genético, familiar. Recordamos de pessoas que sumiram do mapa, mais de uma geração, suas virtudes e grandezas, suas misérias e mesquinharias, como se estivessem ali sentados conosco. Concluímos parvamente que estávamos todos envolvidos com Acopiara, sendo que a geração atual dos acopiarenses nos desconhece. Somos almas penadas vagando pelo mundo, na guerra pela sobrevivência.
Ao sair da Praça Mauá, ouvi no tombadilho coisas difíceis de acreditar. Um jovem senhor dizia para sua jovem senhora, com a erudição de um eqüino com MBA em marketing que o nosso único porta-aviões, que já não se move, parecia um submarino!
Um pai meio coroa com a sabedoria de um muar pós graduado em turismo dizia para o filho que a Ilha Fiscal era o local preferido pelos militares, na ditadura, para fazer orgias.! Outro mostrando sua indigência falava que o Aeroporto Santos Dumont fora uma base dos americanos na II Guerra Mundial! Afastei-me mesmo porque não sou colecionador de pérolas...
O bom do navio de cruzeiro é que não tem jornal, nem tevê, nem Internet. Até que tem mas é tão caro que é preferível curtir, bronzear-se, divertir-se, ler, comer, beber, dormir, fazer exercícios, meditar, jogar baralho. Singrando os mares, sem sustos nem desconfortos, é um oásis de paz e sossego no marzão fidumaégua. Não há Presidente, governadores, prefeitos, ministros, secretários, senadores, deputados federais e estaduais, vereadores, assessores, funcionários, lobistas, mensaleiros, sanguessugas, ladrões, a fina flor da cornucópia federal, nem mendigos, flanelinhas, sem terra, sindicalista, bolseiros As pessoas tem cara de paisagem e alienados, mas todos estão plugados no lado existencial mais efetivo: dando valor às suas vidas.
Basta um comandante contratado por sua competência e um staff, atento, antenado, vendo tudo com discrição. Ah se o nosso mundo real fosse assim, simplificado, gratificante e eficiente. O contribuinte tem seus direitos respeitados, com base em um contrato. Pagou tem direitos. Não pagou nem entra. Vale o que está escrito. Tudo funciona. Há regras e limites. Há respeito ao coletivo e ao indivíduo. O grande irmão, com suas câmera, deve estar presente em cada canto, com seguranças, agentes secretos. Sei que tem atendimento de urgência e um posto médico. O dinheiro de plástico circula pelos terminais de cada serviço.
Temo que em futuro próximo queiram impor cotas para idosos, pessoas com necessidades especiais, menor abandonado, cotas por cor, sexo, idade, escolaridade, renda, animais de estimação, etc. em nome da inclusão social da escumalha.
Será a substituição do cruzeiro pelo real!
(*) JB Serra e Gurgel, (Acopiara), jornalista e escritor.